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Dados pessoais como forma de pagamento por serviços digitais? Perplexidades, continuidades e ruptura

Atualizado: 19 de out. de 2020



Maria Inês Martins, professora auxiliar da Universidade de Coimbra, fez uma exposição sobre acesso a dados pessoais como forma de pagamento por serviços digitais em uma palestra na UFMG no dia 27 de agosto, além de contribuir com um texto para o blog do DTIBR para que você também possa conferir um pouco do que foi discutido:

As recentes polêmicas envolvendo o Facebook e a sociedade Cambridge Analytica, bem como a vinda à tona do sistema chinês de rating de cidadãos, trouxeram destaque ao valor econômico dos dados pessoais e dos perfis que com eles se podem construir, tanto para efeitos de marketing personalizado, comercial ou político, como para efeitos de vigilância e controlo geral da população. Chega finalmente à opinião pública a compreensão de que os serviços digitais de que se vem usufruindo, e que requerem design e programação especialmente dispendiosos, não são fornecidos a preço zero: são pagos mediante a aquisição do valor econômico correspondente aos dados pessoais dos utilizadores.

Proteção de dados x Proteção dos Direitos de Personalidade

Na verdade, encontramos aqui um ponto de confluência entre duas lógicas aparentemente opostas: a lógica de proteção de aspectos da personalidade humana – os dados pessoais, atinentes ao direito à privacidade – e a lógica da celebração de contratos, em que cabe às partes determinar livremente o respectivo conteúdo, ao abrigo da autonomia privada. Enquanto que a lógica de proteção postula que o processamento de dados é proibido quando não se verifique um fundamento que expressamente o permita, a lógica da autonomia privada postula a plena liberdade das partes, salvo onde exista uma norma proibitiva. Uma refração da dificuldade de conciliar estas duas lógicas encontra-se no regime do consentimento para o processamento de dados pessoais, que foi o objeto de grande parte da exposição.

Legitimar o processamento de dados?

O papel do consentimento

Com efeito, debateu-se em primeiro lugar qual poderia ser o fundamento legitimador do processamento de dados pessoais como contrapartida pela aquisição de serviços digitais, vez que o regime do consentimento é o que oferece maior proteção ao titular dos dados.

Com efeito, o modelo da tutela através do consentimento assenta numa ideia de que os sujeitos conseguem se auto-tutelar de forma eficaz, desde que estejam devidamente informados. Perante a atual avalanche de informações com que os usuários se deparam no âmbito digital, bem como perante os enviesamentos do processo de tomada de decisão que tipicamente ocorrem nessa sede, é altamente duvidoso que esta tutela possa funcionar devidamente.

Este é, porém, um problema transversal à contratação massificada; Assim, parece correto não abandonar o modelo da tutela do consentimento informado, mas reconhecer que este não basta, e complementá-lo com medidas de fiscalização direta do conteúdo do contrato – com um especial destaque para o regime dos contratos de adesão.

1ª Questão: Consentimento livre?

Por outro lado, o regime do consentimento tem aspectos que dificultam a construção de um contrato na sua base. Na exposição, salientamos dois aspectos problemáticos. Em primeiro lugar, deve discutir-se, no contexto de um mercado fortemente concentrado de prestação de serviços digitais, que são atualmente de importância grande para os sujeitos, se o consentimento é efetivamente livre. Trata-se do problema do vício do consentimento por coação de fato, cuja superação exigirá que o mercado ofereça alternativas ao sujeito.

2ª Questão: E a revogabilidade?

A maior dificuldade reside, porém, num segundo aspecto: o da revogabilidade para futuro, sem invocação de fundamento e a todo o tempo, do consentimento prestado. Um tal grau de precariedade do contrato é desconhecido da generalidade dos ordenamentos que, mesmo onde mais querem proteger a liberdade do contratante, lhe impõem prazos máximos para desistir do contrato (veja-se o direito do consumidor) ou o forçam à invocação de um fundamento bastante (veja-se o direito de retirada da obra no direito de autor). Este regime contende, pois, com a própria noção de vinculatividade contratual, bem como com as soluções dadas em geral pelos ordenamentos à limitação de direitos de personalidade.

A este propósito, foram analisadas várias tentativas dogmáticas de interpretação do regime da revogação do consentimento, de modo a permitir conciliar a proteção do titular dos dados com o funcionamento da autonomia privada, e a celebração de contratos com conteúdo que interesse a ambas as partes.

Professora Maria Inês no DTI!

No dia seguinte, tive ainda a oportunidade de participar da primeira reunião do Grupo de Estudos em Direito, Tecnologia e Inovação. O grupo debruçou-se sobre textos que explicam o funcionamento do cérebro humano e procurou desconstruir enviesamentos que decorressem do uso do termo "inteligência" em relação aos processadores automáticos, tal como em relação ao cérebro humano, criando a aparência de um perfeito paralelo de processos.

É um tema que até ao presente não analisei de um modo sistemático, e com que apenas contactei até onde a curiosidade intelectual me levou. Mas só posso saudar que esse debate sistemático tenha lugar: só a compreensão do funcionamento do cérebro humano permite compará-lo de um modo pertinente com o funcionamento dos processos artificiais e compreender se, em que tarefas e com que limites o processamento automático pode substituir ou complementar a atuação humana.

Da minha parte, limitei-me a deixar algumas interrogações muito setoriais. Uma primeira, perguntando pelo estatuto atual de análises que atribuem determinado processo a uma parte do cérebro específica (lembrando-me de "O erro de Descartes", de António Damásio). E uma segunda, perguntando pelas conclusões atuais no que toca ao estudo da consciência humana – ou seja, da construção cerebral de um ponto de vista subjetivo face às experiências vividas. Esta pergunta deveu-se, por um lado, à impressão de que a ideia de uma integração central das informações tem sido posta em causa, defendendo-se antes que o ponto de vista pessoal resulta de uma sequência de processos descentralizados. E surgiu também do apelo do que é um dos aspectos mais sugestivos e efabulados no tocante à "inteligência artificial": o da configuração de uma máquina que se compreenda a si mesma como um "Eu".

...Em conclusão: que seja a primeira de muitas trocas de ideias!

Texto enviado pela Maria Inês de Oliveira Martins, Professora Auxiliar da Faculdade de Direito de Coimbra para o blog do DTIBR.


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