Por Rômulo Soares Valentini
No dia primeiro de maio se comemora em âmbito mundial o chamado Dia do Trabalho. Mas o que isso tem a ver com as questões modernas referentes à proteção de dados.
Inicialmente, é importante relembrar que boa parte dos institutos jurídicos que visam regulamentar as relações trabalhistas não surgiram juntamente com os demais direitos civis estabelecidos nos ordenamentos jurídicos modernos a partir do século XIX.
O reconhecimento da necessidade de regulação específica para os chamados direitos sociais, incluindo as relações de trabalho, elevando tais normas ao patamar de direitos fundamentais previstos em âmbito constitucional só iria se concretizar no século XX.
Para tanto, além de pressões sociais de diversas naturezas, os juristas tiveram que se debruçar sobre problemas teóricos dos modelos de Estado nacional e dos limites da ciência jurídica tradicional positivista, de modo a elaborar novas teorias e propostas de regulação, reconhecendo que o desenvolvimento das sociedades humanas demanda um “reconhecimento progressivo de novos direitos humanos e fundamentais”, em um “processo cumulativo, de complementaridade.”[1]
Desse modo, ao conceito original de direitos fundamentais estabelecidos no século XIX em âmbito restrito aos chamados “direitos de matriz liberal-burguesa” consistentes em “liberdades e garantias civis e políticas”, exigiu do processo de amadurecimento da sociedade uma segunda dimensão de direitos humanos: “representada pelos direitos econômicos e sociais de caráter eminentemente positivo (prestacional) e voltados à garantia de determinados padrões de segurança social e igualdade e material a exigir determinados níveis de intervenção estatal no domínio do mercado e da economia.” [2]
Hoje, no início da segunda década do século XXI, pode-se argumentar que as sociedades contemporâneas se encontram em um dilema parecido no que se refere à regulação referente à proteção de dados e a regulação do uso de internet e ambientes digitais.
De um cenário de relativa ausência de regulação específica aplicada ao meio digital que imperou ao final do século XX e no início da primeira década do século XXI, nota-se que nos últimos anos, em um curto espaço de tempo, foram elaborados em âmbito mundial marcos regulatórios para garantir o resguardo de direitos fundamentais dos cidadãos face ao avanço da tecnologia e da importância do acesso à internet e a recursos e serviços providos por meio digital.
No Brasil, destacam-se especialmente nesse aspecto as disposições do Marco Civil da Internet - Lei Federal nº 12.965, de 23 de abril de 2014, que estabeleceu princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil - e a Lei Geral de Proteção de Dados - Lei Federal nº 13.709/2018 de 14 de agosto de 2018, que dispõe sobre a proteção de dados pessoais - estando ainda estágio de tramitação proposta de emenda constitucional que busca elevar o direito à proteção de dados ao patamar de direito fundamental.[3]
Entretanto, tais marcos regulatórios enfrentam a questão de garantias e direitos dos usuários e titulares de dados no âmbito da liberdade de conexão e proteção dos dados pessoais à luz da abordagem típica da primeira dimensão dos direitos fundamentais - notadamente a liberdade e privacidade – em pouco avançando no aspecto regulatório referente aos direitos sociais, notadamente os referentes à aspectos trabalhistas.
Essa omissão vem causado alguns problemas e conflitos sociais em diversos países.
Isso porque não há como se dissociar a realidade das relações de trabalho com a realidade das relações de produção. Nesse aspecto, nota-se que a evolução tecnologia e o modo de funcionamento do meio digital permitiu no decorrer das últimas décadas a consolidação de uma economia baseada em dados (data economy) caracterizada uma concentração de dados e domínio da infraestrutura das redes por oligopólios no setor de tecnologia.
Essa nova realidade do sistema de produção baseado nesta nova data economy colocam em questionamento até que ponto o uso da rede e de dados - ainda que feito em conformidade com as políticas previstas nas regulações de natureza privatística como o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados – pode ser realizado por essas empresas em situação de simetria e igualdade formal em relação aos usuários e empresas menores, sem preocupação com o impacto social gerado por tais condutas no tocante a hipossuficiência dos trabalhadores e demais agentes econômicos que cada vez mais estão submetidos à pressões decorrentes da assimetria de forças entre as partes nesse novo paradigma das relações econômicas[4].
A transformação das relações produtivas permitiu, ainda, a formação do conceito de modelo de negócio dos chamados marketplaces e as chamadas plataformas eletrônicas, que passam a coordenar em larga escala e em nível mundial instrumentos de gerenciamento de provimento de oferta e demanda bens, produtos, serviços, valendo-se, para tanto, de trabalho humano “invisível” e em geral sub-remunerado para a realização dessas tarefas[5], com um nível de controle, em determinados aspectos, ainda mais forte do que nas relações trabalhistas tradicionais[6].
Cedric Durand[7] explica esse fenômeno equiparando as plataformas digitais à "feudos modernos”. A analogia faz sentido, na medida em que tais empresas conseguem ampliar exponencialmente suas fontes de receita não necessariamente a partir de cobrança pelos serviços individualmente considerados, mas pela expansão do poder de infraestrutura de rede e base de usuários – um verdadeiro “território digital” - ao mesmo tempo em que consolidam posições dominantes de mercado sobre a oferta de diversos serviços, sufocando concorrentes e competidores por meio do exercício de sua supremacia tecnológica.[8]
Ainda fruto desse novo arranjo, constata-se que o impacto da nova realidade das relações de produção se concretizou de forma tão rápida e intensa a ponto de que tais empresas passam a ser vista por setores da sociedade como indispensáveis.[9]
Tal situação pode ser vista como uma espécie de “dialética da tragédia” misturada a uma espécie de “síndrome de Estocolmo”, uma vez que se forma a visão de que serviços e postos de trabalho gerados pela plataforma não possuem correlação com a supressão de postos de trabalho tradicionais e a consequente precarização dos salários, mas como uma “tábua de salvação” e única saída viável para combater o desemprego e evitar o colapso na renda das famílias.[10]
Contudo, não são apenas essas novas relações de trabalho que se encontram sujeitas à precarização devido à ausência de parâmetros regulatórios adequados para harmonizar as tecnologias de coleta e tratamento de dados utilizadas pelas empresas no âmbito do controle e monitoramento de seus empregados.
Isso porque a concentração do poderio digital e o desenvolvimento de novas formas de utilização da rede e do fluxo de dados possibilitam a ocorrência transformações nas dinâmicas das relações de trabalho tradicionais para ampliar o nível de subordinação e controle existente no curso das relações de emprego.
Como exemplo, cita-se a tecnologia de 'Pontuação de Produtividade' da Microsoft capaz de monitorar e extrair dados referentes à utilização de e-mail, chat e outras ferramentas digitais por parte de cada trabalhador da organização de modo secreto e invasivo.[11]
Mas não é só.
A própria Microsoft também possui registros de patentes para o desenvolvimento de sistemas que podem 'pontuação de qualidade geral' para reuniões usando dados como linguagem corporal, expressões faciais, temperatura ambiente, hora do dia e número de pessoas na reunião, bem como métricas para determinar o quanto um participante contribui para uma reunião em vez de realizar outras tarefas.[12]
Tais discussões se fazem necessárias e urgentes, uma vez que o controle da infraestrutura de rede e do fluxo de dados resulta na concentração de poder econômico e político. Trata-se de uma concentração exponencial de poder, em escala e dimensão ainda desconhecida, que vem se revelando danosa e fonte de diversos conflitos sociais.
Nesse aspecto, constata-se que as relações de trabalho na contemporaneidade apresentam um incômodo paralelo com a realidade das relações de trabalho no século XXI, na medida em que há uma lacuna no âmbito regulatório e jurídico sobre a necessidade de se promover instrumentos para que o uso comercial de dados e os novos modelos de negócio seja feito não apenas pela dimensão de uma ótica privatista e vinculada aos princípios da livre iniciativa, mas também de modo a resguardar princípios e direitos de caráter social.
Dada a velocidade da transformação do cenário dos meios de produção digital e seu impacto na sociedade, com efeito, já ocorrem manifestações sociais em âmbito mundial para tentar estabelecer novos marcos regulatórios e garantias jurídicas que possam resguardar direitos sociais neste novo contexto da data economy.
Ganham impulso movimentos sociais de aglutinação de novas categorias de trabalhadores em sindicatos[13] e surgem com cada vez mais frequência e destaque decisões judiciais de diferentes países em questões referentes à existência de vínculos e direitos trabalhistas decorrentes dos novos modelos de negócio digitais, ampliando as fronteiras do direito material do trabalho, como, por exemplo, a recente decisão [14]
Ante o exposto, constata-se a existência do seguinte problema a ser enfrentado pelos pesquisadores da área de tecnologia em direito: as regulações existentes e propostas sobre coleta, uso e tratamento de dados em meio digital e pela internet não estão sendo pensadas para enfrentar dilemas trazidos pelo uso das redes no âmbito de direitos sociais no âmbito difuso e coletivo.
Portanto, partindo-se do já explanado referencial teórico de que o direito à proteção de dados no mundo contemporâneo possui o status de direito fundamental, revela-se como uma hipótese apta a enfrentar os problemas expostos a elaboração de pressupostos teóricos para possibilitar a incorporação de uma segunda dimensão do direito fundamental à proteção de dados.
Essa nova dimensão, em consonância com os pressupostos teóricos de compreender a existência de um processo cumulativo e de complementaridade dos direitos fundamentais, talvez possa ser a chave para pensar em novas regulações do trabalho e demais direitos sociais na sociedade do século XXI.
[1] SARLET, Ingo Wolfgang. Mark Tushnet e as assim chamadas dimensões (" gerações") dos direitos humanos e fundamentais: breves notas, p. 499-516, Revista Estudos Institucionais, 2016, p. 500. Disponível em: https://estudosinstitucionais.com/REI/article/viewFile/80/97. Acesso em 27 abr. 2021
[2] Idem, p.502
[4]https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/03/10/cade-bloqueia-novos-contratos-de-exclusividade-entre-ifood-e-restaurantes.ghtml
[5] Nesse sentido, ver Adams-Prassl, Jeremia; Risak, Martin., Uber, Taskrabbit, & Co: Platforms as Employers? Rethinking the Legal Analysis of Crowdwork (February 16, 2016). Comparative Labor Law & Policy Journal, Forthcoming, Oxford Legal Studies Research Paper No. 8/2016, Disponível em https://ssrn.com/abstract=2733003. Acesso em 17 de abril de 2021.
[6]https://brasil.elpais.com/brasil/2021-02-28/fiscalizacao-autua-rappi-por-fazer-de-celular-o-novo-relogio-de-ponto.html
[7]http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/606396-a-logica-do-tecnofeudalismo-tem-uma-ascensao-continua-sobre-nossas-vidas-entrevista-com-cedric-durand
[9]https://tecnoblog.net/330516/governo-define-internet-apps-transporte-uber-99-servicos-essenciais/
[10]https://exame.com/economia/apps-como-uber-e-ifood-sao-fonte-de-renda-de-quase-4-milhoes-de-pessoas/
[11]https://exame.com/tecnologia/microsoft-e-alvo-de-criticas-por-ferramenta-que-monitora-produtividade/
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