Julia D'Agostini
O tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes por plataformas digitais traz à tona enormes preocupações no que diz respeito ao livre desenvolvimento da personalidade desses indivíduos. O artigo 14 da Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD) determina em seu caput que toda e qualquer atividade de tratamento de dados pessoais de crianças e/ou adolescentes deve ser realizada em seu melhor interesse, nos termos da LGPD e da legislação pertinente.
Não entrarei, nesta oportunidade, na discussão envolvendo a interpretação dos parágrafos do Artigo 14 no que diz respeito à exigência ou não do consentimento parental para o tratamento de dados pessoais de adolescentes. Independentemente da interpretação atribuída ao dispositivo, é importante refletir que o consentimento não necessariamente garante maior proteção do titular de dados pessoais, mesmo quando ele é exigido diretamente de pais ou responsáveis.
Além das reflexões quanto à dificuldade de operacionalizar o consentimento parental, é preciso refletir se o consentimento é verdadeiramente livre, expresso e inequívoco. Ao exigir consentimento para todas as atividades de tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes, seu conceito parece se esvaziar. Isso porque só há consentimento livre, quando é possível a sua oposição.
Além disso, é preciso ter em mente que toda e qualquer atividade de tratamento deve ser realizada no melhor interesse do jovem titular dos dados, e que a responsabilidade pelo livre desenvolvimento desses jovens não recai apenas aos pais, mas a toda a sociedade. Assim, o consentimento parental não pode ser visto como justificativa ou legitimação de tratamentos abusivos em hipótese alguma.
Por fim, é necessário refletir quanto ao envolvimento de crianças e adolescentes em discussões quanto à navegação na rede de forma segura, protegida e livre. O consentimento parental não pode ser interpretado como uma exclusão das crianças e adolescentes da discussão, principalmente ao se considerar que suas habilidades operacionais em dispositivos conectados muitas vezes superam a de seus responsáveis.
Os jovens têm muito a contribuir ao debate envolvendo a proteção de seus dados pessoais. Os adultos não detêm o monopólio da sabedoria[1], de modo que o mero “direito de ser ouvido” não pode ser considerado suficiente no que diz respeito ao exercício da autonomia desses jovens. Segundo Daly[2]
O problema é a falta de nuances - podemos ter uma concepção de autonomia que envolve um certo grau de paternalismo apenas quando necessário. Também significa que o respeito pela autonomia das crianças envolve ter que se dar ao trabalho de facilitar seu processo de tomada de decisão - fornecendo informações, dando conselhos e apoio, e alocando recursos adequados para essas instalações.[3]
Se os nativos digitais passarão toda a sua vida sujeitos ao compartilhamento de dados pessoais no ambiente online, a absorção pelos pais de toda a responsabilidade por tomadas de decisões até que estes indivíduos se tornem capazes para consentir não os preparam para assumir essa responsabilidade. É preciso dar aos jovens as ferramentas necessárias para desenvolverem o conhecimento e senso crítico necessário para esse tipo de tomada de decisão.
O Reino Unido e o Age Appropriate Design
O Data Protection Act do Reino Unido prevê a elaboração de um código de práticas e padrões de age appropriate design para serviços que possam ser acessados por crianças. Considerando que um a cada cinco usuários da Internet no Reino Unido são crianças, mas que a rede e a grande maioria das plataformas não foram desenvolvidas para o uso por crianças, o código propõe empoderar jovens e adultos a partir da exigência de práticas desenvolvidas com foco no melhor interesse da criança.
O Código de Age Appropriate Design se destina às plataformas não apenas direcionadas a crianças e adolescentes, mas a toda e qualquer plataforma que pode ser acessada por esse público, em expressa intenção de abarcar todos os conteúdos e serviços acessados por estes indivíduos na prática cotidiana.
Os 15 standards estabelecidos pelo código buscam garantir maior segurança às crianças, para que não sofram com a coleta excessiva de dados pessoais, de modo que as atividades respeitem ao melhor interesse da criança, não só no que tange atividades de tratamento pontuais, mas ao desenvolvimento da autonomia e capacidade dessas crianças.
Nesse sentido, o código busca trazer um equilíbrio para a tutela dos direitos das crianças, compreendendo a necessidade de que as crianças participem ativamente enquanto protagonistas de seus direitos como titulares de dados. Para isso, o código, por diversas vezes, traz distintas orientações para diferentes faixas etárias, de acordo com a capacidade de discernimento.
Por exemplo, com relação ao padrão estabelecendo a necessidade de transparência, que determina que todas as informações de privacidade, como políticas e padrões, devem ser concisas, proeminentes e em linguagem clara e adequada à idade da criança. Nesse sentido, não se generaliza que um determinado formato de política está adequado para crianças e outro formato está adequado para adultos, mas se desmembra as possíveis faixas etárias das crianças com acesso à plataforma, identificando a melhor abordagem para cada uma.
Para crianças até 5 anos de idade, por exemplo, recomenda-se o uso de áudios e vídeos orientando-as a buscarem ajuda de um adulto. Já para jovens entre 13 e 15 anos, sugere-se o uso de textos, vídeos e áudios que expliquem de forma clara e adequada todas as implicações referentes às alterações nas configurações de privacidade, elucidando todos os riscos envolvidos e incentivando que consultem um adulto caso tenham alguma dúvida ou preocupação, devendo haver informações em um formato adequado para que pais ou responsáveis possam acessá-las, compreendê-las e discuti-las com as crianças.
Outro ponto relevante para o desenvolvimento da autonomia da criança, é a necessidade de informar expressamente à criança quando seus pais ou responsáveis estiverem utilizando ferramentas de controle parental para estabelecer limites para sua atividade online ou monitorar sua localização. O respeito ao direito de privacidade das crianças não deve ser observado apenas pelas plataformas, mas também pelo seu núcleo familiar.
Crianças sujeitas a monitoramento excessivo podem ter uma percepção reduzida da sua privacidade, o que pode afetar o desenvolvimento de sua identidade. Conforme as crianças amadurecem, cresce a sua expectativa por privacidade, o que significa que elas devem ser empoderadas para controlar não só os dados pessoais coletados por serviços online pelas grandes plataformas, mas também devem ter conhecimento e participarem das definições de controle parental em seus dispositivos.
Conclusão
O consentimento parental foi a solução escolhida por diversas legislações para garantir o melhor interesse das crianças em suas aventuras online. Contudo, se este mecanismo tem se mostrado insuficiente para garantir efetiva proteção a esses indivíduos, bem como o desenvolvimento de sua autonomia. É necessário que crianças e adolescentes sejam tidos como protagonistas dos exercícios de seus direitos, não apenas ouvidos, mas ativamente atuando nas tomadas de decisões. Nesse sentido, o Age Appropriate Design se apresenta enquanto solução inovadora e promissora na garantia da participação de crianças e adolescentes na construção de sua privacidade e autonomia, sempre em prol de seu melhor interesse.
Referências Bibliográficas
BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. (2018). Dispõe sobre a proteção de dados pessoais e altera a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014 (Marco Civil da Internet). Brasília. Acesso em 14 de junho de 2019, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13709.htm
DALY, Aoife. Children, Autonomy and the Courts: Beyond the Right to be Heard. Leiden: Brill, 2017.
ICO. Age appropriate design: a code of practice for online services. Disponível em https://ico.org.uk/media/for-organisations/guide-to-data-protection/key-data-protection-themes/age-appropriate-design-a-code-of-practice-for-online-services-2-1.pdf. Acessado em Set. 2020.
[1] Thomas et O’Kane, apud DALY. p.189 [2] DALY, Aoife. Children, Autonomy and the Courts: Beyond the Right to be Heard. Leiden: Brill, 2017. [3] “It is the lack of nuance which is the problem – we can have a conception of autonomy which involves a degree of paternalism only where necessary. It also means that respect for children’s autonomy involves having to go to the trouble of facilitating their decision-making process – providing information, giving advice and support, and properly resourcing these facilities.” (DALY, p. 132)
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