Por Laiane Caetano
Em outubro, uma desenvolvedora de jogos identificou que a Steam havia proibido a publicação de jogos blockchain em sua plataforma. Apesar da falta de nota oficial justificando a vedação, o assunto gerou sérias discussões sobre a decisão da plataforma e de suas práticas de mercado.
O que são os blockchain games?
Em termos acadêmicos não há uma definição objetivamente considerada sobre o que pode ser o jogo: as conceitualizações vão depender do escopo do estudo. Nessa toada, Johan Huizinga em Homo Ludens já falava do jogo como elemento central para a formação da cultura, conferindo-lhe autonomia ao deixar de associá-lo como produto de uma sociedade. Essa perspectiva permite situar os jogos blockchain como elemento cultural na atual sociedade marcada pela revolução digital, fruto da busca de novas funcionalidades para uma tecnologia que tem ganhado espaço e mercado.
Huizinga trouxe em sua obra um conceito muito importante: para o autor, o jogo acontece dentro do “círculo mágico”, delimitado no tempo e num espaço determinado com regras próprias, cujas ações não teriam reflexos ou ganhos no mundo real. Esse elemento final traz uma reflexão interessante: no universo dos jogos digitais, determinar o conceito de jogos eletrônicos sem considerar os benefícios auferidos pelos jogadores no mundo real ignora o mercado das microtransações que tem crescido ao longo dos anos. O jogo não pode, portanto, ser definido a partir de sua separação com o mundo real quando este influencia ou é influenciado pelo jogo e pode trazer reflexos jurídicos para fora dele. Edugames e gameterapia, conhecidos como serious games, são exemplos de jogos que estão relacionados com a vida real, ponto este que também é é uma das principais características dos jogos blockchain atuais.
A blockchain é uma tecnologia com uma gama de possibilidades de uso que vão além do popular uso para criptomoedas. Vistos por muitos como o “futuro” dos jogos eletrônicos e por outros - visão a qual me filio - como uma subcategoria no mercado de jogos por trazer uma nova perspectiva sobre propriedade de ativos digitais, os jogos que utilizam tecnologia blockchain tem ganhado destaque nos últimos anos, principalmente depois do pioneiro Crypto Kitties e do recente sucesso de Axie Infinity.
Uma das principais características dos jogos blockchain é a possibilidade de se conferir, ao jogador, a efetiva propriedade de um ativo digital relacionado a um NFT. Isso decorre de elemento da própria blockchain, que consiste numa tecnologia de informação distribuída ou banco de dados distribuído (DTL – distributed ledger technology) com um conjunto de blocos de dados ligados por uma “corrente”, que garantem a integridade histórica da informação por meio do uso do código hash criptografado e ligado ao bloco anterior e pela prova de trabalho.
As transações existentes dentro de cada bloco são realizadas por meio da transferência de dados de carteira a carteira, em que cada uma delas possui uma chave pública (um endereço), atrelado a uma chave privada. A combinação dessas chaves permite acessar o conteúdo da carteira, um token não fungível (ou NFT, de non-fungible token), que pode ser livremente distribuído a qualquer outra carteira, em pleno exercício do poder de disposição que decorre do direito à propriedade.
As desenvolvedoras de jogos ou os responsáveis por sites que fazem a intermediação na venda de jogos digitais, como a Steam (VALVE) e a GOG (CD Projekt) deixam expresso no contrato com o consumidor que podem se valer de arbitrariedades em relação aos bens digitais adquiridos ou conquistados, vez que os ativos digitais são de propriedade das desenvolvedoras, cuja posse é transferida temporariamente aos jogadores por meio de uma licença de uso. Não há exercício dos poderes da propriedade, ou seja, há limites quanto ao uso, o gozo e a disposição da coisa. Por outro turno, muitos jogos blockchain prometem a efetiva propriedade de bens digitais, trazendo poucos limites ao seu exercício, o que é permitido pela própria tecnologia.
Além das transações em criptomoedas, os ativos digitais adquiridos nesses jogos são NTFs e possuem valor de mercado, podendo ser fonte de investimento para entusiastas. A possibilidade de disposição do bem, inerente à propriedade, é o que torna os ativos dos jogos blockchain tão atrativos. Para se ter noção, existem profissionais e, principalmente investidores, dedicados à compra, à venda e à especulação dos ativos como forma de obter ganhos financeiros.
O mercado de blockchain games, diferentemente dos jogos eletrônicos “tradicionais” - aqui referenciados como aqueles focados exclusivamente em entretenimento - tem crescido independentemente de plataformas, embora as plataformas desempenhem papel de extrema relevância para que esse tipo de produto chegue a novos consumidores. Um exemplo é o famoso Axie Infinity, que ganhou popularidade no último ano por conta da massiva divulgação de influenciadores digitais do mundo dos investimentos e criptomoedas. Jogadores têm acesso ao jogo por meio do próprio site, criando uma carteira de criptomoedas e adquirindo, a partir disso, axies no mercado do próprio jogo. Crypto Kitties já havia adotado esse modelo em 2017, o qual acabou sendo adotado por vários jogos desenvolvidos posteriormente. Ainda assim, a possibilidade de utilização do poder de mercado e da carta de clientes de uma plataforma que distribui jogos pode auxiliar na potencialização das vendas do jogo e na sua popularidade.
O que é a Steam e como é feita a inclusão de jogos na plataforma
Desenvolvida pela Valve LLC em 2003 e contando atualmente com mais de 1 bilhão de contas criadas, a Steam se identifica atualmente como uma plataforma de gestão de direitos digitais. Plataformas como a Steam criam um catálogo amplamente diversificado capaz de atender uma pluralidade de consumidores, concentram as informações de quem as utiliza e intermediam o processo de venda não apenas de jogos mas de conteúdos adicionais (DLC) e outros ativos relacionados aos jogos do catálogo. É, essencialmente, um ambiente que conecta consumidores e desenvolvedores ou publishers. Empresas que tenham interesse em disponibilizar seus jogos eletrônicos na plataforma devem se adequar às regras previamente estipuladas e, uma vez aprovado, o jogo estará devidamente disponível para comercialização.
Pessoas físicas ou jurídicas que tenham interesse em publicar jogos na plataforma devem preencher os requisitos previamente estabelecidos, dentre eles cadastrar o responsável pelo jogo - pessoa física ou jurídica - , informar uma conta bancária, criar uma página para o jogo na plataforma e ainda, pagar a quantia de R$380,00 (trezentos e oitenta reais) para cada produto a ser distribuído - ou, em termos próprios, “publicado”. Feita a solicitação de inclusão do jogo, a plataforma realiza uma análise para averiguar se os requisitos exigidos foram cumpridos e, se aprovado, disponibiliza o jogo em seu ambiente. Com o jogo inserido na plataforma, as aquisições feitas pelos usuários passam pela intermediação da Steam, que determina as formas de pagamento, estipula os termos de uso e retém para si uma porcentagem das vendas.
Ao longo dos anos a Steam tem mostrado abertamente um posicionamento voltado para autonomia do consumidor e das desenvolvedoras. Existem inúmeros jogos voltados ao público adulto com conteúdo de violência e sexo explícito, tendo como filtro apenas um formulário simples para inserir a data de nascimento do jogador. Já para as desenvolvedoras, as restrições são relativas ao passo que também são constantemente modificadas. A Steam já manteve no catálogo produtos controversos como Rape Day - polêmico jogo em que o jogador praticava estupro contra personagens mulheres - e mantém outros, como Leanna´s Slice of Life - em que a personagem principal é vítima de importunação sexual e estupro de vulnerável, tudo como elemento de progressão do jogo.
Isso demonstra a arbitrariedade da plataforma em relação à análise do conteúdo que disponibiliza e, tendo por referência as posturas que já adotou, costuma retirar do catálogo apenas jogos que despertam sentimento negativo na comunidade de consumidores. Ocorre que não há grande comoção na comunidade de consumidores da Steam problematizando os jogos baseados em NFT, o que levanta alguns questionamentos sobre a postura da plataforma e sobre o poder que concentra.
A proibição de blockchain games na Steam
No dia 14 de outubro foi notificado pela Space Pirate, empresa responsável pelo jogo blockchain Age of Rust, que a Steam havia proibido a inclusão de jogos dependentes de tecnologia de “blockchain” que emitem ou permitem a comercialização de NFT. Até o momento a plataforma não publicou nota sobre o ocorrido.
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