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Direitos Autorais de Obras de Arte Produzidas por InteligĂȘncia Artificial

  • Foto do escritor: Tarik Alves
    Tarik Alves
  • 10 de ago. de 2020
  • 8 min de leitura

Por Lorena Prates

Introdução


Com o avanço da tecnologia, InteligĂȘncias Artificiais vĂȘm provando que poucas tarefas podem ser executadas exclusivamente por seres humanos. Nas artes, algoritmos produzem pinturas, poemas, livros e mĂșsicas com pouca ou nenhuma contribuição humana para o resultado final. No entanto, as estruturas jurĂ­dicas nĂŁo se mostram preparadas para acompanhar esse avanço e, por vezes, nĂŁo tĂȘm uma resposta conclusiva sobre a qualificação de tais obras dentro dos institutos do direito autoral.


As teorias que fundamentam a proteção autoral podem ser divididas em duas. De um lado, uma corrente naturalista entende que somente o ser humano pode ser autor, posto que a obra Ă© uma externalização da sua personalidade ou, ainda, uma forma de manifestação do seu trabalho intelectual ou fĂ­sico. De outro lado, uma corrente utilitarista vĂȘ a proteção legal como um mecanismo de incentivo Ă  produção artĂ­stica, visto que, ao estabelecer estruturas de incentivos econĂŽmicos para os autores, os juristas estĂŁo protegendo seus interesses em criar e, dessa forma, toda a sociedade se beneficiarĂĄ com mais cultura e entretenimento.


As jurisdiçÔes que jĂĄ se depararam com o desafio da atribuição de direitos autorais a obras de arte criadas por algoritmos, como Ă© o caso dos Estados Unidos, do Reino Unido e da UniĂŁo Europeia, tendem a seguir a corrente naturalista. No seu entendimento, por faltar um sujeito de direitos a quem atribuir a autoria, as obras nĂŁo podem ser tuteladas juridicamente. Como consequĂȘncia, tais produçÔes tendem a cair no domĂ­nio pĂșblico. A doutrina, por outro lado, se aprofunda mais no debate.


Nível de Interação entre humanos e IA


O primeiro passo para iniciar a discussão é entender o nível de envolvimento dos seres humanos e das måquinas criativas no processo artístico. Em um primeiro nível, a tecnologia pode ser vista como mera ferramenta para a produção, como é o caso das måquinas fotogråficas, situação em que é o fotógrafo quem detém o maior controle sobre o resultado final, sendo de sua autoria a imagem produzida.


Em um segundo nĂ­vel, cada situação deve ser analisada individualmente porque hĂĄ uma grande contribuição humana, porĂ©m o resultado final Ă© atingido por uma inteligĂȘncia artificial. É o caso, por exemplo, da obra Next Rembrandt, produzida por um algoritmo desenvolvido pela ING em parceria com a Microsoft. Esse algoritmo foi alimentado com uma enorme base de dados de obras do pintor holandĂȘs Rembrandt van Rijn e produziu um quadro original inspirado no artista por meio de uma impressora 3D. O interessante, nesse caso, foi o envolvimento de uma equipe de cientistas de dados, historiadores e artistas que estudaram as obras a fim de determinar o estilo, as tĂ©cnicas e o objeto central da criação do artista. Sendo assim, dada a grande contribuição humana, Ă© pouco provĂĄvel que a obra entrasse no terceiro nĂ­vel de interação de mĂĄquinas com humanos.


No terceiro nĂ­vel, os algoritmos atuam com pouca ou nenhuma participação humana. Nesse caso, os desenvolvedores da inteligĂȘncia artificial – geralmente redes neurais artificiais ou convolucionais – nĂŁo conseguem prever o resultado que serĂĄ obtido. Os usuĂĄrios da ferramenta geralmente estĂŁo envolvidos no processo apenas selecionando estilos e apertando um ou dois botĂ”es, sem esforço criativo relevante. Os proprietĂĄrios das mĂĄquinas tampouco tĂȘm influĂȘncia sobre o conteĂșdo que serĂĄ produzido. É o caso, por exemplo, da imagem abaixo, produzida pela autora desse artigo em apenas alguns cliques.

Faculdade de Direito da UFMG com ares de Van Gogh


Fonte: Criado pela ferramenta Deep Dream Generator a partir de foto do acervo pessoal da autora


É nesse nĂ­vel de interação que o debate se torna relevante, posto que, na ausĂȘncia de um autor humano, a obra produzida por inteligĂȘncia artificial fica Ă  mercĂȘ do direito autoral. Nesse sentido, diferentes soluçÔes sĂŁo propostas pela doutrina e pela jurisprudĂȘncia.


SoluçÔes Encontradas


A primeira e mais adotada solução Ă© optar pela nĂŁo atribuição da propriedade intelectual a tais obras, que entram no domĂ­nio pĂșblico a partir do momento da sua produção. Argumentos favorĂĄveis a essa alternativa envolvem a ampliação do acesso Ă s obras produzidas e, geralmente, estĂŁo amparados na noção de que hĂĄ formas alternativas de exploração econĂŽmica nesses casos, seja por meio da publicidade que Ă© feita em prol das empresas por trĂĄs da tecnologia, seja por meio da proteção que jĂĄ Ă© conferida ao algoritmo em si, nĂŁo sendo necessĂĄria uma proteção adicional Ă  obra final.


No entanto, alguns problemas podem ser encontrados nessa solução como, por exemplo, o desincentivo a pequenos artistas que utilizam essas ferramentas para produzirem obras de arte, como Ă© o caso do fotĂłgrafo Bas Uterwijk, que cria retratos quase reais de personalidades histĂłricas. Ainda, atĂ© mesmo grandes empresas que investem em pesquisa e desenvolvimento de mĂĄquinas criativas podem, sem perspectiva de retorno econĂŽmico sobre as obras, destinar seus recursos para outras ferramentas. A tĂ­tulo de exemplo, o interesse econĂŽmico pode ser demonstrado no caso da obra Portrait of Edmond de Belamy, que foi vendida em um leilĂŁo por cerca de 432 mil dĂłlares, demonstrando o potencial da criação por inteligĂȘncias artificiais.


Como alternativa a essa solução, doutrinadores que seguem a corrente de Ryan Abbott entendem que o direito autoral deveria ser atribuĂ­do a um terceiro humano. As vantagens dessa proposta relacionam-se com os incentivos econĂŽmicos, sobretudo se o agente detentor desses direitos for o proprietĂĄrio do algoritmo, visto que Ă© ele quem tem mais controle sobre a sua utilização e pode determinar licenças de usos para artistas como Bas Uterwijk para a produção artĂ­stica. No entanto, vĂĄrias dificuldades prĂĄticas surgem dessa solução, indo desde a definição do terceiro que seria o detentor de tais direitos – o desenvolvedor, o usuĂĄrio ou o proprietĂĄrio – atĂ© a nĂŁo aceitação das cortes, que nĂŁo atribuem autoria quando estĂĄ ausente o elemento criatividade impresso pelo prĂłprio autor humano. Foi pela ausĂȘncia deste elemento que o Copyright Office dos Estados Unidos negou autoria Ă s selfies de Naruto, em 2016.


Hå ainda autores, como Timothy Butler, que defendem a criação de uma personalidade jurídica para esses casos. Outros, seguindo a decisão tomada pela União Europeia para a criação de novos direitos sui generis para as bases de dados, entendem que esse seria o caminho para os direitos autorais produzidos por algoritmos, entrando na ordem legal como uma nova categoria de direitos. Esse é o posicionamento defendido por uma comissão do Reino Unido em um relatório produzido pela Association for the Protection of Intellectual Property (AIPPI) em 2019. Embora se apresentem como soluçÔes tecnicamente mais corretas para responder ao problema, não são muito coerentes com o movimento que o próprio tema propÔe. Com as råpidas mudanças tecnológicas, a criação de novas personalidades jurídicas ou de novas categorias de direito se apresentam como mais uma burocracia a ser construída, correndo o risco de sequer acompanharem os avanços tecnológicos e acabarem não servindo ao seu propósito.


Finalmente, hĂĄ soluçÔes que propĂ”em a atribuição de direitos conexos aos direitos autorais diante desse desafio. Ana Ramalho apresenta algumas delas como, por exemplo, o broadcasting, que protege o direito de exclusividade de emissoras, ou o entrepreneurial work, adotado no Reino Unido para proteger pessoas que investem em criatividade contra o plĂĄgio e a pirataria, ou ainda os disseminator’s rights, que tem inĂ­cio com o fim do prazo de proteção autoral concedido em lei para fins de publicação post mortem. Essas soluçÔes dispensam o elemento criatividade de forma mediata por parte dos titulares dos direitos e sĂŁo amplamente adotadas em vĂĄrias partes do mundo, inclusive no Brasil na lei de Softwares, em seu art. 4Âș, que atribui ao empregador o direito de exploração dos softwares elaborados pelos seus desenvolvedores, ainda que o proprietĂĄrio nĂŁo tenha exercido nenhuma atividade criativa.


Os direitos conexos funcionam tecnicamente porque não misturam o direito moral de autor do direito patrimonial de autor. O primeiro seria aquele defendido pelos naturalistas enquanto uma manifestação da personalidade do autor e, portanto, somente atribuível aos criadores humanos. Jå o segundo responde aos fundamentos utilitaristas, desconsiderando a origem autoral da obra, sendo capaz de visualizar o valor socioeconÎmico da proteção legal.


Uma proposta nova que busco trazer Ă© resultado de uma mistura das soluçÔes anteriores, tendo em vista seus aspectos positivos e negativos. Por vezes, o interesse econĂŽmico protegido nĂŁo precisa ser o do direito autoral per se, ao contrĂĄrio do que acredita Abbott, mas tampouco seria ideal que as obras nĂŁo fossem objeto de nenhuma proteção legal, como sugere a jurisprudĂȘncia. Tendo como base plataformas de streaming, como Ă© o caso do Spotify, tendo a vislumbrar os direitos conexos como algo mais tangĂ­vel ao problema enfrentado. Tais plataformas se baseiam na lĂłgica de disponibilização imediata das obras de arte de forma gratuita pelos artistas, que recebem royalties em função da sua popularidade.

Algo semelhante pode ser pensado para as obras de arte criadas por algoritmos, com uma amostra gratuita para os usuĂĄrios de pequenos trechos de mĂșsicas como jingles, ou atĂ© mesmo para a criação artĂ­stica isolada, como apresentado acima na imagem produzida pela ferramenta Deep Dream Generator. No entanto, para algo mais robusto, como mĂșsicas estilizadas, um quadro que seja uma obra prima ou atĂ© mesmo para fins profissionais como Ă© o caso do fotĂłgrafo Bas Uterwijk, licenças de uso ou comissĂ”es podem ser pagas ao proprietĂĄrio do algoritmo, que poderia inclusive recrutar equipes de humanos que contribuam para o processo criativo mais elaborado, como foi feito no caso da ING. Em um modelo de negĂłcios freemium, o proprietĂĄrio nĂŁo deixa de ter incentivos econĂŽmicos para investir em pesquisa e desenvolvimento de mĂĄquinas criativas; a sociedade se beneficia com um acesso maior Ă  cultura e ao entretenimento gerado graças a esses algoritmos; e os humanos artistas ganham mais uma ferramenta para trabalharem, podendo mudar a maneira como nos relacionamos com a arte.

ConclusĂŁo

Muito embora a discussĂŁo sobre a atribuição de direitos autorais a obras de arte criadas por inteligĂȘncia artificial tenha um grande espaço para se desenvolver, os desafios enfrentados pelo direito jĂĄ nĂŁo estĂŁo muito distantes da nossa realidade. As soluçÔes atĂ© entĂŁo encontradas pela doutrina e pela jurisprudĂȘncia apresentam pontos fortes e pontos de melhoria. No entanto, Ă© importante que tenhamos em mente a relevĂąncia do debate e as possibilidades que se abrem para a criação artĂ­stica quando algoritmos nĂŁo dependem mais de intervenção humana.

É preciso levar em conta diferentes elementos, que vĂŁo desde os fundamentos da proteção legal de obras de arte, passando pelos aspectos tĂ©cnicos da criação artĂ­stica por redes neurais atĂ© o impacto econĂŽmico das decisĂ”es relativas ao tema. SĂł assim um debate prĂłspero serĂĄ viĂĄvel e toda a sociedade poderĂĄ desfrutar de mais cultura e entretenimento graças aos avanços tecnolĂłgicos da nossa era.

Lorena Prates é graduanda em Direito pela UFMG e licenciada em Administração pela Université de Lille.

ReferĂȘncias BibliogrĂĄficas


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