Grupo de Estudos em Direito e Tecnologia da Universidade Federal de Minas Gerais – DTEC - UFMG
Data: 26/09/2023
Relatores: Marina Coimbra de Azeredo Quelhas; Samira Borelli Satriano; Lucas Alves Andrade Rocha
1. DA REUNIÃO E A COTEXTUALIZAÇÃO DOS ARTIGOS
O encontro do presente grupo de pesquisa ocorreu no dia 26 de setembro de 2023, com início às 11h30min, através da plataforma Zoom. A abertura foi realizada pelo monitor Tarik e, após breves cumprimentos aos integrantes, os relatores iniciaram a exposição da seguinte temática: “Governo digital no Brasil: o Direito Administrativo e a Lei nº 14.129/2021”.
Na abordagem inicial sobre a temática do Governo Digital no Brasil, a integrante Marina Coimbra de Azeredo Quelhas trouxe insights valiosos, analisando de forma crítica os textos relacionados ao Direito Administrativo e à Lei nº 14.129/2021.
Sua análise abordou pontos cruciais, destacando aspectos relevantes da legislação e identificando lacunas que merecem atenção no contexto do avanço tecnológico na Administração Pública brasileira. Ao enfatizar tópicos como a proteção de dados pessoais, os direitos do usuário, a criação de plataformas de governo digital e a abrangência da legislação, Marina lançou as bases para uma discussão aprofundada sobre a efetividade e os desafios do Governo Digital no país, destacando as origens de tal marco normativo no Brasil, seus avanços, bem como a insuficiência de muitos dispositivos na lei, que não traz, por exemplo, a noção de federalismo informático.
Em primeiro plano, foi analisado o texto que aborda a formação da teoria do Direito Administrativo no Brasil, influenciada, principalmente, pelo direito francês, italiano e alemão.
No que tange à influência francesa, menciona-se como uma de suas principais heranças a modelagem das instituições, bem como a formação da própria teoria do direito administrativo. Nesse sentido, é notável a importância da Revolução Francesa, que foi responsável por formar a base do constitucionalismo contemporâneo, trazendo a noção de direito individual, bem como a valorização dos princípios da legalidade e do controle jurisdicional da Administração Pública.
Quanto ao direito italiano, cita-se como algumas de suas maiores influências os institutos em espécie (a exemplo da autarquia, da entidade paraestatal e a própria noção de interesse público). Nesse sentido, a unificação italiana do século XIX também assumiu papel fundamental, ao conceber a Administração Pública de maneira centralizada e sedimentar as noções de situações jurídicas subjetivas e “provvedimento” como uma decisão que expresse o exercício de poder pela Administração Pública. Outrossim, o fortalecimento do direito comunitário europeu a partir dos anos 90 também foi responsável por introduzir, no ordenamento italiano, novos princípios e redefinir as noções de publico e privado.
Por fim, o diferencial trazido pela doutrina alemã foi uma maior dependência entre o direito administrativo e o direito constitucional, de modo que, no período após a Constituição Alemã de 1949, o direito administrativo passou a ser dominado por direitos fundamentais constitucionalmente garantidos e focalizado na jurisprudência alemã. Todos esses ordenamentos jurídicos - em maior ou menor grau - foram responsáveis por influenciar a base do direito administrativo brasileiro, o que dialoga intimamente com o tema do Governo Digital e fornece as bases para o debate no Brasil.
Dando prosseguimento a análise, no artigo do Professor José Fernando Ferreira Brega, destaca-se que a Lei do Governo Digital (LGD), promulgada em 29 de março de 2021, representa um passo na introdução da tecnologia da informação na Administração Pública brasileira. Junta-se a outras leis relacionadas à atuação governamental eletrônica, como a LAI, o Marco Civil da Internet, a LGPD e a legislação sobre assinaturas eletrônicas. Contudo, o texto da LGD carece de uma clara justificativa para sua criação, não esclarecendo se atende às reais necessidades da Administração e dos cidadãos. Originado do PL n. 7.843/2017, o texto passou por alterações no processo legislativo, impactando sua coesão.
Apresenta uma crítica a falta de operacionalidade e mecanismos de controle eficazes na LGD. Apesar de estabelecer nobres objetivos, a lei não parece suficiente para enfrentar os desafios reais da Administração Pública no contexto da transformação digital. Sendo, o debate sobre o governo digital no Brasil é crucial para evoluções futuras, e este estudo contribui com uma análise crítica, não para desmerecer, mas para promover reflexões e aprimoramentos.
Destaca ainda, que a LGD aborda a proteção de dados pessoais de maneira genérica, remetendo à LGPD. As plataformas de governo digital devem garantir transparência e controle, permitindo aos cidadãos exercerem seus direitos. A ANPD tem a atribuição de editar normas, já prevista na LGPD, levantando questionamentos sobre redundância. A LGD não restringe a proteção de dados à atuação eletrônica, sendo uma ratificação das normas existentes.
A LGD busca desenvolver plataformas de governo digital, mas enfrenta desafios como a falta de padrões nacionais vinculantes, ênfase em serviços documentais e autonomia concedida aos entes federativos. A lei não abrange processos judiciais e legislativos e permite que Estados e Municípios adotem normas federais ou criem as suas, afetando a coerência das regras.
Em resumo, o autor destaca que a LGD, apesar de estabelecer objetivos importantes, carece de mecanismos eficazes, levantando questões sobre sua aplicabilidade e contribuição real para a Administração Pública no contexto da transformação digital. O estudo visa promover uma reflexão construtiva sobre a legislação e o avanço do governo digital no Brasil.
Ao final do artigo, foram apresentadas aas principais perspectivas futuras e os principais desafios à implementação do governo digital no Brasil, considerando questões técnicas/tecnológicas, econômicas, sociais e culturais.
Por fim, o último artigo abordado no seminário foi “A 4ª Revolução Industrial e governo digital: exame de experiências implementadas no Brasil”, das autoras Leticia Regina Camargo Kreuz e Ana Cristina Aguilar Viana. A primeira parte do texto aborda a transição para a Quarta Revolução Industrial, caracterizada pelo avanço tecnológico e suas implicações na sociedade. Inicialmente, a autora destaca a previsão de Marshall McLuhan sobre uma "Aldeia Global" interconectada pela tecnologia, mencionando a atualidade dessa visão na era digital. A Quarta Revolução Industrial é definida pela rapidez e profundidade das transformações tecnológicas, com destaque para a mudança na noção de espaço e tempo.
O texto também discute a relação do Estado com essas transformações, ressaltando a interconexão do governo e a necessidade de adaptação a um novo modelo tecnológico. O conceito de Governo Digital, definido pelas Nações Unidas, é introduzido, destacando seu papel na promoção da participação dos cidadãos nos processos de tomada de decisões.
No contexto brasileiro, são citados exemplos de iniciativas tecnológicas implementadas pelo governo, como a declaração de imposto de renda online, sistemas informatizados de justiça, pregões eletrônicos, entre outros. A pesquisa visa avaliar se essas ferramentas digitais ampliam a participação popular e contribuem para tornar o Estado mais democrático.
A segunda parte do texto explora a Quarta Revolução Industrial e as novas tecnologias. O autor destaca o impacto da revolução digital, ressaltando a velocidade sem precedentes das transformações, influenciando diversas indústrias e setores da sociedade. A introdução de sistemas ciberfísicos, baseados na internet das coisas e computação em nuvem, é mencionada como um elemento-chave dessa revolução.
A terceira parte aborda o constitucionalismo latino-americano e o ideal de ampliação da participação popular. O texto destaca o papel do Estado Democrático de Direito na proteção dos direitos individuais, na promoção de outros direitos fundamentais e na decisão coletiva. O constitucionalismo na América Latina é descrito como mitigado, com ênfase no liberalismo econômico sobre o político. A ampliação de direitos, formas de participação e o novo papel do Poder Judiciário são identificados como características do novo constitucionalismo na região.
A quarta parte apresenta uma análise das experiências brasileiras na incorporação de tecnologias para democratizar a administração. O texto examina os horizontes tecnológicos e os caminhos para a efetivação de um Governo Digital em consonância com os princípios do constitucionalismo latino-americano.
O texto destaca os objetivos e perspectivas do governo digital no Brasil, incluindo melhorias na prestação de serviços, aumento da transparência e participação dos cidadãos. São mencionadas iniciativas como a Política de Governança Digital, o avanço do Brasil no ranking mundial de dados abertos e experiências governamentais bem-sucedidas, como a digitalização do processo judicial e o aplicativo A.DOT para adoção.
Ao final, o texto aborda a chegada da Quarta Revolução Industrial e sua influência na transformação das interações entre pessoas e sistemas. Destaca-se a necessidade de adaptação e incorporação das tecnologias no mundo jurídico e no poder estatal para implementar a participação social dos cidadãos no processo decisório. O estudo de caso do Governo Digital brasileiro revela avanços na abertura de dados, transparência e iniciativas nos poderes Judiciário e Legislativo. São ressaltadas as oportunidades oferecidas pelas tecnologias para resolver questões estruturais, como o excesso de encarceramento e os desafios no processo de adoção. O texto enfatiza a importância da informação, exposição e transparência para o sucesso das plataformas digitais e destaca o papel crucial das Tecnologias de Informação e Comunicação na promoção de uma administração pública participativa e alinhada aos princípios do constitucionalismo latino-americano.
2. ESTADO DA ARTE E AS APLICAÇÕES DO GOVERNO DIGITAL NO BRASIL
Além das discussões teóricas e conceituais, a recente exposição sobre Governo Digital no Brasil trouxe casos práticos que ilustram a efetiva implementação dessas iniciativas. A palestrante, Samira Borelli Satriano, servidora pública, compartilhou insights valiosos sobre o tema, focando em duas importantes ferramentas já utilizadas no Brasil.
Incialmente apresentou o Sistema Eletrônico de Informações - SEI, desenvolvido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), destaca-se como uma ferramenta crucial de gestão de documentos e processos eletrônicos. Sua missão é impulsionar a eficiência administrativa, sendo parte integrante do Processo Eletrônico Nacional (PEN), uma colaboração entre diversos órgãos públicos. Esse projeto visa construir uma infraestrutura pública para processos e documentos administrativos eletrônicos.
O Processo Eletrônico Nacional (PEN), por sua vez, é uma infraestrutura pública de processo administrativo eletrônico que busca melhorar substancialmente a gestão processual. Sua gestão está a cargo da Secretaria de Gestão e Inovação, coordenada pela Diretoria de Informações, Serviços e Sistemas de Gestão, resultando de esforços integrados no governo federal.
Durante sua apresentação, Samira Borelli Satriano destacou algumas funcionalidades práticas do SEI, incluindo a edição do Termo de Referência, Minuta de Edital, Termo de Responsabilidade, bem como demonstrou como opera o controle de processos, assinatura eletrônica e acesso externo de usuários. A ênfase foi dada à demonstração prática dessas ferramentas, ressaltando sua utilidade na gestão eficiente de processos administrativos.
Dentre os pontos abordados, foi esclarecido que a Lei de Governo Digital (LGD) não representa uma inauguração no governo digital, pois os órgãos administrativos já podiam atuar por meios eletrônicos. Estados, Municípios e o Distrito Federal têm a autonomia para adotar a aplicação dessa lei por meio de atos normativos próprios. Além disso, a LGD não abrange processos judiciais e legislativos, que continuam regidos por leis específicas.
Uma observação relevante foi a ausência de um sistema nacional de governo digital, o que não isenta cidadãos e empresas do ônus burocrático de lidar com ambientes distintos na administração pública. A questão do federalismo informático foi apontada como um desafio a ser enfrentado.
Samira Borelli Satriano também mencionou que a concepção de abrangência dos serviços digitais ainda é limitada aos serviços documentais, destacando a necessidade de ampliação desse escopo para melhor atender às demandas da sociedade.
Encerrando sua apresentação, a palestrante abordou o Portal de Compras Governamentais, enfatizando que é a área de trabalho do Compras.gov.br. Esse portal reúne tarefas diárias relacionadas à Cotação/Dispensa Eletrônica e Pregão Eletrônico, além de itens relativos à Gestão de Riscos e ETP Digital, proporcionando uma visão abrangente das atividades governamentais na área de compras.
Esses casos práticos apresentados por Samira Borelli Satriano evidenciam a concretização do Governo Digital no Brasil, demonstrando como as ferramentas tecnológicas estão sendo utilizadas para promover eficiência, transparência e inovação na administração pública.
A apresentação do expositor Lucas Rocha foi marcada por uma abordagem teórica consistente que conectou o conceito de Governo Digital com a Criptoeconomia, que futuramente culminará no lançamento do Real Digital (DREX). A exposição começou contextualizando a evolução da sociedade, destacando as diferentes fases históricas e, mais recentemente, a era da Sociedade da Informação.
O ponto central da apresentação foi a Lei do Governo Digital (LGD), promulgada em 29 de março de 2021, que representa um avanço significativo na introdução da tecnologia da informação na Administração Pública brasileira. O Governo Digital, conforme definido pela LGD, busca modernizar os serviços públicos, utilizando meios eletrônicos como parte central da administração.
A conexão entre o Governo Digital e a Criptoeconomia foi estabelecida de maneira clara. Ambos dependem fortemente das tecnologias digitais para operar. O Governo Digital foca na modernização dos serviços públicos, enquanto a Criptoeconomia se baseia em tecnologias como blockchain, contratos inteligentes e criptomoedas para transformar os sistemas econômicos.
O expositor ressaltou a importância de uma legislação que apoie a inovação, mesmo que não seja um requisito estrito para o desenvolvimento. A Lei do Governo Digital, nesse sentido, oferece um marco normativo que pode remover obstáculos e fornecer uma base sólida para o desenvolvimento de um governo verdadeiramente digital.
A segunda parte da apresentação concentrou-se nos conceitos fundamentais da Criptoeconomia. A criptoeconomia foi definida como um estudo interdisciplinar que combina conceitos de ciência da computação e ciência econômica. Destacou-se o papel da tecnologia blockchain, contratos inteligentes e criptomoedas na transformação da coordenação e desenvolvimento da economia global.
A exposição forneceu uma análise aprofundada sobre a tecnologia blockchain, destacando sua descentralização, disponibilidade, integridade, transparência, auditabilidade, imutabilidade, irrefutabilidade, privacidade, anonimato, desintermediação e cooperação, bem como incentivos.
A relevância da Criptoeconomia foi justificada por sua crescente capitalização de mercado, que ultrapassou a marca de 3 trilhões de dólares em 2022. O Brasil não ficou alheio a esse fenômeno, com aproximadamente 7,8% da população possuindo criptoativos. Isso representa um crescimento constante e um interesse significativo no mercado de criptomoedas e tecnologia blockchain no país.
A última parte da apresentação concentrou-se no Real Digital, ou DREX. Destacou-se que essa moeda digital emitida pelo Banco Central pode representar uma forma de democratização do acesso ao sistema financeiro, permitindo transações globais sem intermediários tradicionais.
O DREX foi apresentado como uma representação digital do real, baseada em uma plataforma eletrônica operada pelo Banco Central. Sua tecnologia é fundamentada no sistema Hyperledger Besu, com destaque para o algoritmo de consenso "Prova de Autoridade". A apresentação enfatizou a segurança jurídica oferecida pelo Real Digital, sendo emitido e controlado pelo Banco Central do Brasil.
Os casos de uso do DREX incluem troca de titularidade de veículos, investimento e resgate de produtos financeiros, compra de pequenas participações em imóveis fracionados, entre outros. A tokenização de produtos e serviços foi destacada como uma verdadeira revolução, proporcionando segurança jurídica devido ao controle e autorização pelo Banco Central do Brasil.
A apresentação concluiu com a previsão de liberação do Real Digital até o final de 2024, destacando seu potencial para transformar transações financeiras e impulsionar a inovação no sistema financeiro brasileiro.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desse modo, conclui-se que a Lei do Governo Digital, apesar de seus inúmeros pontos de melhoria, foi responsável por trazer à tona o debate sobre o tema, o que não se iniciou com a promulgação da lei. Isso porque o processo de utilização das tecnologias da informação pela Administração Pública já ocorria nos anos anteriores, o que foi bastante exemplificado ao longo dos textos e do seminário.
Nesse sentido, reconhece-se que, apesar dos tímidos avanços trazidos pela lei, sua promulgação representou também a valorização do consenso parlamentar e do debate nacional acerca da regulação da atuação administrativa em meios digitais, o que serviu – e ainda serve – como base para pesquisas e estudos no país.
REFERÊNCIAS:
ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de. Formação da teoria do direito administrativo no Brasil. São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 85-127.
BREGA, José Fernando Ferreira. Perspectivas sobre a Lei do Governo Digital no Brasil. In: CRAVO, Daniela; JOBIM, Eduardo; FALEIROS JR., José Luiz de Moura (coord.). Direito público e tecnologia. Indaiatuba: Foco, 2022, p. 223-243.
KREUZ, Letícia Regina Camargo; VIANA, Ana Cristina Aguilar. 4ª Revolução Industrial e governo digital: exame de experiências implementadas no Brasil. Revista Eurolatinoamericana de Derecho Administrativo, Santa Fe, v. 5, n. 2, p. 267-286, jul./dez. 2018.
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