Grupo de Estudos em Direito e Tecnologia da Universidade Federal de Minas Gerais – DTEC - UFMG
Data: 14/09/2021
Relatores: Luíza Moreira de Carvalho e Renata Cavalcanti de Carvalho Garcia
INTRODUÇÃO À INTERNET DAS COISAS E OS DESAFIOS REGULATÓRIOS
O termo Internet das Coisas (Internet of Things – IoT) foi proposto por Kevin Ashton, em 1999, no Laboratório de Auto-ID do MIT, onde se realizavam pesquisas no campo da identificação por radiofrequência em rede (RFID) e tecnologias de sensores.
Ricardo Magrani, na obra Internet das Coisas, aponta que “Existem fortes divergências em relação ao conceitode IoT,não havendo, portanto, um conceito único que possa ser considerado pacífico ou unânime. De maneira geral, pode ser entendido como um ambiente de objetos físicos interconectados com a internet por meio de sensores pequenos e embutidos, criando um ecossistema de computação onipresente (ubíqua), voltado para a facilitação do cotidiano das pessoas, introduzindo soluções funcionais nos processos do dia a dia. O que todas as definições de IoT têm em comum é que elas se concentram em como computadores, sensores e objetos interagem uns com os outros e processam informações/dados em um contexto de hiperconectividade.”
Realizado debate sobre o assunto, um conceito de IoT foi construído pelo grupo de estudo DTEC, apresentando os seguintes elementos:
visa oferecer bens e serviços: necessariamente o IoT atende a uma demanda que oferece bens ou serviços;
opera em rede com utilização de qualquer protocolo: significa que os dispositivos conectados em rede irão operar em qualquer protocolo;
sensores irão capturar os estímulos, e por meio de uma programação prévia a ação será iniciada;
substituição da ação humana: definitivamente, a ideia é substituir a ação humana. Dessa forma, as “coisas” irão operar numa rede, e, por meio de uma programação prévia, a oferta/demanda de bens e serviços será realizada.
Dessa forma, o grupo conseguiu elaborar um conceito que, até o momento, não havia sido encontrado na bibliografia disponível.
Outra questão levantada no grupo foi se a conectividade entre os dispositivos de IoT deveria estar online durante todo o processo. Após considerações, o grupo concluiu que não havia necessidade da conexão online durante todo o processo.
Vários exemplos de IoT foram apresentados pelo grupo:
Sensores de incêndio em uma casa: se os sensores forem acionados mecanicamente, sem uma ação programada, não seria um IoT. Para o grupo, se os sensores de incêndio, ao serem ativados pelo calor, realizarem uma chamada para o corpo de bombeiros, nesse caso poderia caracterizar um IoT;
Geladeira que detecta falta de algum alimento, e já abre o pedido de compra para algum fornecedor;
Sensores que auferem os dados vitais do paciente e já acionam a ingestão de medicamento adequado.
Os dispositivos IoT demandam ampla coleta de dados, conectividade e algoritmos preditivos, muitas vezes sem a necessária clareza e indicação ao consumidor. Assim, os riscos de violações de dados e incidentes de segurança são evidentes, com danos diversos ao usuário, inclusive potencial discriminatório.
Cite-se que os regimes regulatórios existentes são insuficientes, necessitando de revisão, especialmente quanto à responsabilidade dos fabricantes e distribuidores de IoT, para compatibilizar as inovações do mercado com as questões de privacidade e segurança cibernética.
Existem diversas leis sobre privacidade e proteção de dados no mundo, como o GDPR (Regulamento de Proteção de Dados/Europa), a HIPAA (Lei de Portabilidade e Responsabilidade de Seguros de Saúde/EUA) e a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados/Brasil), sendo imprescindível a observância, pelas empresas, das regras e princípios correspondentes, inclusive para a manutenção dos negócios.
Os principais desafios dos serviços/produtos IoT relacionados à privacidade e à segurança cibernética são (i) ciberatacantes podem alterar os dados para criar resultados discriminatórios; (ii) ciberatacantes podem atingir dispositivos IoT para coletar grandes conjuntos de dados e promover violações de dados em larga escala; (iii) grandes volumes de dados permitem a agregação para fins de venda, transferência e troca. Os fabricantes podem combinar dados criados por IoT com outras informações sobre os usuários; (iv) as tecnologias de IoT são baseadas em Big Data, IA e computação em nuvem, o que multiplica potenciais desafios para prevenir a discriminação, garantir a privacidade, proteger a segurança individual e proteger a propriedade; (vi) as leis existentes não protegem adequadamente os consumidores que compram produtos de IoT; (vii) remoção de dados potencialmente discriminatórios ou a "regulação dos algoritmos"; (viii) Termo de Aviso de Privacidade e o modelo tradicional de consentimento do usuário – necessidade de equilibrar os interesses do mercado e do consumidor, de forma mais eficaz; (ix) exposição de informações de crianças e outros vulneráveis.
VISÃO GERAL SOBRE O CENÁRIO REGULATÓRIO
Os Estados Unidos ainda não desenvolveram um marco regulatório abrangente para IoT, Big Data e IA. As leis de privacidade e de segurança cibernética existentes, fornecem uma proteção mínima para serviços IoT em setores específicos e de alto risco. Por exemplo, para serviços de saúde e dispositivos médicos, duas leis regulam a privacidade e a segurança dos serviços e dispositivos para os consumidores: HIPAA e a Lei de Alimentos, Medicamentos e Cosméticos. Outros exemplos são os dispositivos IoT que afetam a privacidade das crianças, como brinquedos conectados, regulados pela COPPA, com exigência de coletar consentimento explícito e verificável de um pai e o direito de parar o processamento de informações pessoais.
Na União Europeia, a GDPR e a Diretiva de Segurança Cibernética de Informações de Rede (NIS Directive) abordam questões mais abrangentes que as de privacidade e de segurança cibernética, oferecendo modelos potenciais para a regulação da IoT.
Sabe-se que, cada vez mais, empresas e governos têm feito uso de machine learning, para tomar ou dar suporte a decisões com forte impacto na vida dos indivíduos, variando desde o preço e a disponibilidade de bens e serviços on-line, a elegibilidade para obtenção de crédito ou benefícios previdenciários, até decisões relativas à reincidência criminal. Só que o GDPR prevê salvaguardas legais que recaem sobre tais decisões automatizadas, como os direitos do titular de dados à explicação e também à oposição, como prevenção de injustiças e discriminações. A Diretiva NIS, por sua vez, estabeleceu uma estrutura mais robusta de cibersegurança para setores críticos de infraestrutura, tais como: saúde, bancos, mercado financeiro, energia, transporte, água e infraestruturas digitais.
A partir dessas considerações, e num cenário ideal, a regulação de IoT deve buscar o equilíbrio entre os interesses do mercado com os avanços da tecnologia e a proteção adequada ao consumidor. São necessárias medidas de transparência e controle, com o prévio aviso de privacidade, o consentimento dos usuários de IoT, a opção de correção de injustiças e de oposição ao processamento automatizado.
Os regulamentos também devem incentivar o uso de metodologias diferenciais de privacidade, como pseudonimização, anonimização ou criptografia, o que reduziria os riscos de segurança cibernética e as obrigações com notificação de violação de dados.
Outra solução seria o armazenamento de Big Data em provedor em nuvem. Um armazenamento de dados pessoais abriga dados de uma variedade de dispositivos e origens para um indivíduo. Os benefícios incluem armazenamento padronizado de dados, pontos de origem identificados, registros de solicitações de dados e dados gerais capturados. Ter um repositório central e comum não só poderia melhorar as necessidades de acesso e simplificar as solicitações de dados, mas também poderia permitir que usuários tomassem decisões sobre seus dados, como limitações no compartilhamento a terceiros.
NEUTRALIDADE DA REDE, PATENTES E OUTROS DESAFIOS
A implementação da IoT exige um alto nível de velocidade e tempo de latência baixo. Assim, considerando a insuficiência da estrutura das redes móveis, seria necessário priorizar certos serviços, como por exemplo uma cirurgia à distância, em detrimento do tráfego de dados de serviços menos essenciais.
Há, ainda, uma discussão sobre a (im) possibildiade de patentear softwares. Patentear um software em si não parece, à primeira vista, possível porque que não são considerados invenções ou modelos de utilidade. No entanto, Thing, que é a mistura de software, hardware parece atender aos requisitos para ser patenteado. Existem discussões candentes em alguns países acerca da inclusão dos softwares como passíveis de patentes, o que encorajaria o desenvolvimento tecnológico.
Outro ponto que envolve o desafio da regulamentação da IoT diz respeito ao uso de biometria, peça-chave para impulsionar aplicações da IoT, tanto no varejo quanto na autenticação multifator. Muito embora a biometria possa ser um reforço à segurança, ela também representa um risco, na medida que não é rígida e não pode ser alterada como as senhas, comprometendo o direito à privacidade.
Enfim, a IoT ainda enfrentará diversos desafios regulatórios. Diversos países, têm se mobilizado para resolver alguns problemas. No Brasil, o Decreto n° 9.854/2019 instituiu o Plano Nacional de Internet das Coisas (IoT), com premissas relevantes para o setor essencial do desenvolvimento e da transformação digital. Também temos a Lei Geral de Proteção de Dados, que estabelece diretrizes para o tratamento de dados de pessoas no país. Na Itália, foi formado um comitê permanente de comunicação M2M, coordenada por ministros. O Reino Unido, por sua vez, definiu que a legislação deve ser mantida ao mínimo necessário para facilitar o desenvolvimento da IoT.
Uma solução, proposta por Guido Noto, seria (i) usar a privacidade como uma vantagem competitiva para o marketing e trabalhar com a regulação fragmentada por setor (saúde, planejamento urbano, transporte, etc.). Para o autor, melhor opção regulatória para a IoT seria um (ii) consenso internacional, com a criação de princípios e normas fundamentais, (iii) a co-regulação, proporcionando um quadro geral regras e (iv) a conscientização e educação da sociedade, isso porque o ser humano está e deve estar no centro das tecnologias que aspiram ser sustentáveis e empoderadoras.
Bibliografia Base
RAYES, Ammar, SAMER, Salam (auth.) - Internet of Things From Hype to Reality - The Road to Digitization, cap. I
TSCHIDER, Charlotte A. - Regulating the Internet of Things: Discrimination, Privacy, and Cybersecurity in the Artificial Intelligence Age
LA DIEGA, Guido Noto - The Internet of Citizens - A Lawyer's view on some technological Developments in The United Kingdom and India
Bibliografia Complementar
MAGRANI, Eduardo. A internet das Coisas. Editora FGV, 2018.
BRASIL. LGPD. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13709
BRASIL. LEI Nº 14.108, DE 16 DE DEZEMBRO DE 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14108.htm
BRASIL. DECRETO Nº 9.854, DE 25 DE JUNHO DE 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D9854.html
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