Por Marina Moretzsohn Chust Trajano
A deflagração da Revolução Técnico-Científico-Informacional, iniciada no século XX, promoveu total integração entre ciência, tecnologia e informação, e contou com o advento da internet, meio que rompeu limites físicos de distância e tempo, gerando relevante ampliação do fluxo informacional. É evidente que essa dinamicidade tem efeitos também na atuação governamental - possibilitando, além da otimização de algumas operações, o monitoramento eletrônico da população. Junto ao aumento das possibilidades de controle, pelo governo, por vias digitais, observou-se, também, o crescimento das preocupações com o embasamento legal do tratamento desses dados. Neste texto, pretende-se abordar políticas governamentais de monitoramento que não se pautam no consentimento populacional - fenômeno que se intensificou na pandemia de Covid-19.
Em primeira análise, na abordagem do monitoramento digital para fins de controle da pandemia de Covid-19, destaca-se a atuação do governo chinês, que utiliza, principalmente, de aplicativos de rastreamento da população. Nesse sentido, partindo de dados de geolocalização das operadoras, de tecnologia móvel e de big data, avaliam-se os movimentos dos usuários nos 14 dias anteriores, averiguando se o indivíduo passou por áreas de risco ou teve contato com infectados pela Covid-19. A partir desses dados, o software apresenta "códigos de saúde", que podem ser verdes, amarelos ou vermelhos, a depender do risco a que o indivíduo foi exposto. Assim, o cidadão pode ser obrigado a ficar em quarentena em casa ou até mesmo em hotéis fechados, previstos para isso. Desse modo, a rotina dos chineses passou a ser totalmente ditada por aplicativos de smartphone, de modo que cada movimento passa a ser ditado pela cor exibida no "código de saúde"
Destaca-se que as medidas adotadas na China, principalmente levando em conta o relativo sucesso do combate à disseminação do vírus no país, vem se mostrando como tendência para diversas localidades no mundo - como é o caso de Singapura, que criou um sistema de rastreio de contatos que permitiria às autoridades identificar pessoas que foram expostas a pacientes da Covid-19. Na França, ainda, observa-se o aumento dos debates sobre o tema, com a ascensão de um aplicativo que parte de tecnologia Bluetooth, para promover alertas anônimos de pacientes infectados às pessoas com quem tiveram contato.
É importante ressaltar que nesses softwares, é necessário que o usuário forneça seu nome, número de identidade, telefone e, algumas vezes, foto. Membros do governo alegam que os dados pessoais "são usados apenas para combater a epidemia", além de garantir que podem acessar apenas o sobrenome das pessoas e os dois últimos números de sua identidade. Contudo, esses aplicativos funcionam sem o consentimento dos chineses, que vivem em um país onde ainda não há leis ou regulamentos específicos sobre a proteção de dados pessoais.
Nesse sentido, destaca-se que o consentimento vem se tornando cada vez mais relevante nas legislações voltadas à proteção de dados, em todo o mundo. Exemplo disso reside na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que buscou devolver ao titular de dados o poder de decisão e conhecimento sobre a forma com que seus dados são tratados, e, a partir da proteção concedida a essas informações, garantir o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.
Desse modo, a LGPD apresenta requisitos de forma e conteúdo específicos para o consentimento, de forma que o titular apresente efetiva consciência sobre seus dados. Assim, o consentimento deve ser: (i) livre, podendo titular escolher se seus dados serão tratados ou não; (ii) informado, de modo que o indivíduo tome conhecimento da forma e da finalidade - que, por sua vez, deve ser específica, legítima e explícita; (iii) inequívoco, não restando dúvidas de que foi concedido de modo específico para determinado fim, devendo ser escrito, de modo destacado, ou representado de modo a demonstrar a manifestação de vontade do titular. Ainda, ressalta-se que o consentimento pode ser revogado a qualquer tempo pelo titular.
A presente exposição levanta uma discussão sobre a existência de uma lacuna, já que a LGPD não se aplica ao tratamento de dados pessoais realizado para fins exclusivos de segurança pública, defesa nacional, segurança do Estado, ou atividades de investigação criminal. Nessa conjuntura, surgiu o anteprojeto da "LGPD Penal", objeto de futuras discussões no Blog.
Por fim, torna-se evidente a urgência de adoção de legislação específica voltada à proteção de dados, em seus diversos âmbitos, em todo o mundo, mas, especialmente, por parte de países que já adotam fortes políticas de monitoramento da população por vias digitais.
ótimo artigo!