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TrateCov: dados de saúde e hackers imaginários

Laiane Caetano Fantini


Figura 01 - Imagem de divulgação oficial do Ministério da Saúde.

Pra cego ver: mão segurando um celular que exibe o aplicativo, com os dizeres “TrateCov Brasil”. No segundo plano há uma prancheta com uma caneta e um estetoscópio remetendo aos instrumentos de trabalho de um médico.


O TrateCov, controverso aplicativo voltado a auxiliar profissionais da saúde no diagnóstico e tratamento da Covid-19, realiza o tratamento inadequado de dados pessoais sensíveis, faz o diagnóstico a partir da quantidade de pontos marcada com o preenchimento de sintomas aleatórios do paciente e, ainda, recomenda e prescreve medicamentos e substâncias relacionadas ao tratamento precoce. Analisamos aqui alguns pontos deste serviço.


Introdução


No dia 14 de janeiro deste ano foi oficialmente lançado pelo governo federal o serviço virtual TrateCov [1], ferramenta criada com o objetivo de auxiliar profissionais da saúde no atendimento a pacientes para diagnóstico da Covid-19, sugerindo, segundo o órgão ministerial, “algumas opções terapêuticas disponíveis na literatura científica atualizada”.


Desde o lançamento, o aplicativo apresentou características questionáveis ao permitir o acesso e preenchimento das informações por qualquer pessoa, ao lidar com dados pessoais sensíveis sem o devido tratamento legal, e, ainda, por ter um sistema de diagnóstico baseado em score que considera qualquer tipo de sintoma com valor específico e, alcançando uma pontuação mínima, indica de plano o tratamento precoce e traz a prescrição e posologia dos medicamentos como hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina, doxiciclina e sulfato de zinco.


É importante destacar que este não é o único aplicativo disponibilizado pelo Governo Federal para auxiliar nas medidas de controle da pandemia.


Seguindo uma tendência mundial em desenvolver mecanismos digitais para gerir dados relacionados à Covid-19 e acompanhar a proliferação do vírus, em março de 2020 foi lançado para plataformas mobile o aplicativo Coronavírus - SUS. Tive a oportunidade de analisar a primeira versão do aplicativo e publiquei um breve ensaio no livro Os dados e o Vírus. Em julho, o serviço passou por uma robusta atualização que afetou a interface, as autorizações de dispositivo solicitadas e a política de privacidade, dessa vez, em conformidade com a LGPD.


Também em 2020 o governo direcionou investimentos para reforçar as medidas para digitalização de informações clínicas de pacientes que utilizam o SUS, ou seja, dados pessoais de natureza sensível, com a finalidade de criação do Prontuário Eletrônico [2]. Essas e outras medidas fazem parte do projeto do Ministério da Saúde que objetiva informatizar os dados de saúde no país.


A controvérsia do diagnóstico gerado


Deixando questões políticas de lado, o jornalista de dados Rodrigo Menegat analisou o código fonte do aplicativo e identificou uma aparente falha no diagnóstico gerado pelo aplicativo. As suas observações foram divulgadas no GitHub e em seu perfil oficial do twitter.


De acordo com o código fonte, o mecanismo por trás do aplicativo funciona num sistema de score por meio do qual cada sintoma narrado pelo paciente ou verificado pelo médico corresponde a uma pontuação a qual, no final da avaliação, traz um diagnóstico. A pontuação mínima para receber o diagnóstico de Covid-19 é 6, conquanto uma breve soma de sintomas como dor de cabeça e febre já chegam nesse resultado.


Segundo Menegat, quando o paciente apresenta baixa pontuação no score, indicativo de suspeita de Covid-19, o aplicativo exibe, independentemente de variáveis como a exposição ao risco ou janela de tempo, a indicação e posologia de cloroquina, ivermectina, hidroxicloroquina, azitromicina, sulfato de zinco, dentre outros relacionados ao que tem sido conhecido como “kit Covid” ou “tratamento precoce da Covid”. Pela análise do código-fonte, não há nenhum outro medicamento que compõe o diagnóstico gerado pelo aplicativo.


TrateCovid analisado de perto


O aplicativo TrateCov foi inicialmente disponibilizado em Manaus e, segundo o Ministério da Saúde, estava em fase de cadastramento de profissionais médicos.


Todavia, diante das polêmicas levantadas dias após o lançamento oficial, o Ministério da Saúde retirou o aplicativo das lojas virtuais e, na página disponibilizada do mesmo serviço, destacou a parte que se refere ao TrateCov como um “ambiente de simulação que ficará disponível até que sejam realizados e validados os cadastros para registro dos profissionais de saúde na plataforma”. O aviso em destaque pode ser consultado aqui.


Contudo, ainda que seja uma versão de teste do aplicativo, os resultados retornados estão em conformidade com as controversas recomendações de tratamento precoce divulgadas pelo Ministério da Saúde. A base científica, por exemplo, é a Nota Informativa n. 17/2020 GAB/SE/MS. O folder de divulgação ministerial pode ser consultado aqui.


Ademais, diversas pessoas relataram que tiveram a oportunidade de usar o serviço inseriram sintomas aleatórios e receberam o receituário dos medicamentos para o tratamento precoce propagandeado pelo Ministério da Saúde. Tomei a liberdade e preenchi um cadastro com dados fictícios para verificar como funcionava o score do aplicativo e encontrei resultados semelhantes aos relatos. Esses testes foram realizados no dia 20/01/2021 às 23:51h.

No primeiro teste, no perfil fictício criado inseri algumas comorbidades e informações condizentes com sintomas comuns de Covid-19. O score resultou em 60 pontos e, logo em seguida, a página já apresentava um aviso para a indicação de tratamento precoce, seguida da prescrição dos medicamentos, campo em branco para a “posologia” (embora já conste a posologia na prescrição) e para preenchimento dos dados do médico responsável.

No segundo teste, alterei algumas das comorbidades e verifiquei que isso não afetava a pontuação final do “exame”. O parâmetro eram os sintomas, que serviam como referência para o score ao final.


Assim, cuidei de colocar apenas o mínimo de sintomas que gerasse a soma de 6 pontos, marcando aleatoriamente todos eles:

Tal como no primeiro teste, qualquer pontuação acima de 6 reflete na indicação de tratamento precoce e na prescrição dos medicamentos recomendados, faltando apenas o preenchimento da “posologia” e dos dados do médico responsável.


A versão completa dos arquivos dos testes pode ser acessada aqui e aqui.


Isso leva a presumir que, não importa os dados de entrada em relação aos sintomas e, menos ainda, em relação às comorbidades e contato com pessoas suspeitas de contaminação, uma vez que a soma dos pontos relativos aos sintomas correspondam a pelo menos 6, o aplicativo apresentará os mesmos resultados em termos de prescrição e posologia.


Da divulgação do aplicativo a sua retirada do ar: algumas considerações


As análises feitas por Rodrigo Menegat e outros usuários que ou testaram diretamente o aplicativo ou tiveram acesso ao código fonte, tiveram grande repercussão.


Ronaldo Lemos, um dos primeiros a apontar as irregularidades no aplicativo, afirmou em uma entrevista [3], que o serviço apresenta clara configuração de crime de responsabilidade além de uma clara violação aos dados pessoais, por não apresentar uma política de dados adequada e por hospedar esses dados pessoais sensíveis em servidor localizado fora do país.


O Conselho Federal de Medicina divulgou nota oficial sobre o aplicativo alertando publicamente algumas inconsistências na ferramenta. De acordo com a nota, o aplicativo permite o preenchimento de dados por usuários que não sejam médicos, induz à automedicação e, principalmente, não traz nenhum esclarecimento sobre o tratamento dos dados pessoais usados para alimentar o serviço. Ao final da nota, solicitou ao Ministério da Saúde a retirada imediata do ar deste aplicativo [4].


No mesmo dia, o site também foi retirado do ar. Isso foi notícia em vários veículos de imprensa e, embora ainda não tenha havido manifestação oficial do Ministério da Saúde, a justificativa para a retirada do aplicativo foi a invasão por terceiros, que ativaram o serviço indevidamente [5]. A justificativa contrasta com a própria divulgação de lançamento pelo órgão ministerial.


O tratamento de dados pessoais pelo TrateCovid


Uma questão apontada por Ronaldo Lemos é em relação ao servidor em que esses dados coletados estão sendo hospedados. De acordo com Lemos, o aplicativo está hospedado em um sistema chamado Redcap (Research Eletronic Data Capture), desenvolvido por uma universidade norte-americana, e o qual não informa claramente a sua adequação à LGPD.


Embora o aplicativo seja supostamente acessível a médicos e não tenha a intenção de ser disponibilizado para o público em geral, há tratamento de dados pessoais e dados pessoais sensíveis do paciente envolvido na consulta.


São tratados dados como nome completo do paciente, data de nascimento, sexo, idade e telefone para contato além das comorbidades. Tendo em vista que a ideia é que o preenchimento dos dados seja feito diretamente pelo médico responsável pelo atendimento, supõe-se que todos os dados serão preenchidos por um profissional qualificado, a partir de suas constatações na anamnese.


Como o aplicativo foi retirado do ar, resta prejudicada a análise das regras para tratamento de dados pessoais de pacientes. Porém, alguns aspectos problemáticos acerca da proteção de dados pessoais foram apontados por Hiago Kin, na entrevista concedida ao TILT [6]. Segundo ele, a falta de transparência sobre a política de dados acaba distorcendo os papéis do titular de dados pessoais e dos agentes de tratamento.


O aplicativo não informa uma base legal de tratamento tampouco solicita o consentimento dos titulares e isso se agrava quando se constata que esses dados não serão preenchidos diretamente pelo titular mas sim, por um médico. A situação fleta, então, com o compartilhamento indevido de dados pessoais sensíveis e o sigilo


Todavia, a nota publicada pelo CFM traz alguns indícios sobre a falta de esclarecimento acerca do tratamento dos dados pessoais que forem utilizados para alimentar o aplicativo e o Código de Ética Médica.


Isso é preocupante por várias razões. Primeiro por se tratar de um serviço que, segundo o Ministério da Saúde, utiliza critérios clínicos rigorosos para fornecer o diagnóstico mas, em verdade, a partir do diagnóstico controverso recomenda apenas um tipo de tratamento. Segundo por coletar dados pessoais dos pacientes, sem apresentar qualquer garantia de anonimização e sem esclarecimento sobre as bases legais de tratamento. Terceiro por suas implicações a respeito da datificação da saúde que invariavelmente servirá como medida de monitoramento social.


Ainda que o site tenha sido retirado do ar, nada foi dito a respeito do período de teste e das informações coletadas até então, do armazenamento desses dados ou ainda, a justificativa para a criação e lançamento do serviço, que ocorreu oficialmente no dia 14 deste mês.


Referências


[1] CASA CIVIL. TrateCov: aplicativo auxilia médicos no diagnóstico da Covid-19. Jan, 2021. Disponível em: https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/noticias/2021/janeiro/tratecov-aplicativo-auxilia-medicos-no-diagnostico-da-covid-19. Acesso em: 19 jan. 2021.


[2] CASA CIVIL. Mais de R$430 milhões são destinados para a implantação do Prontuário Eletrônico nos postos de saúde. Dez, 2020. Disponível em: https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/noticias/2020/dezembro/mais-de-r-430-milhoes-sao-destinados-para-a-implantacao-do-prontuario-eletronico-nos-postos-de-saude. Acesso em: 19 jan. 2021.


[3] OLIVEIRA, Maria. Aplicativo da saúde do governo configura crime de responsabilidade, diz jurista. Jan, 2021. Disponível em: Aplicativo de saúde do governo configura crime de responsabilidade, diz jurista | Congresso em Foco (uol.com.br). Acesso em: 22 jan, 2021.


[4] Conselho Federal de Medicina. CFM aponta inconsistências em aplicativo do Ministério da Saúde. Jan, 2021. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/noticias/cfm-aponta-inconsistencias-em-aplicativo-do-ministerio-da-saude/. Acesso em: 22 jan. 2021.


[5] ISTO É DINHEIRO. Ministério da Saúde retira do ar aplicativo TrateCovid. Jan, 2021. Disponível em: https://www.istoedinheiro.com.br/ministerio-da-saude-retira-do-ar-aplicativo-tratecovid/. Acesso em: 22 jan. 2021.


[6] TAGIAROLI, Guilherme. TrateCov: sistema do governo que sugere cloroquina não explica o uso de dados. Jan, 2021. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2021/01/20/tratecov-app-sugere-tendencia-para-tratamento-precoce-de-covid-19.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 22 jan. 2021.

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